O estoicismo é pop, mas será que as pessoas entendem mesmo essa filosofia?
A corrente filosófica greco-romana está na moda, mas críticos afirmam que o pensamento estoico acabou diluído em simplificações e erros
Rogério Alves, advogado - Serenidade para aceitar as coisas que você não tem como mudar. Não, este não é um texto sobre a Oração da Serenidade, que costuma abrir as reuniões dos Alcoólicos Anônimos, mas sobre como o estoicismo – e a suposta atitude resignada comumente atribuída ao estilo de vida estoico – se tornou um um fenômeno cultural, sobretudo para aqueles que buscam na filosofia antiga um guia para lidar com os desafios profissionais.
A atitude “relaxa, você não tem como controlar tudo ao seu redor” foi um bálsamo para Raul Perazza. O gerente de produtos digitais da Ambev foi apresentado ao estoicismo em uma sessão de terapia.
“Eu vinha tratando uma ansiedade bastante ligada ao trabalho e meu psicólogo indicou o livro O Ego é seu Inimigo, do Ryan Holiday”. A experiência valeu a pena para Raul, que a definiu como “libertadora”.
“O estoicismo te leva a aceitar as coisas como elas são; a entender que elas estão acontecendo porque têm de acontecer. O seu papel é viver dentro dessa condição”, explica. “É um pouco duro, mas poupa sofrimento e faz com que você gaste menos energia desejando que as coisas fossem diferentes”.
Estátua de Marco Aurélio (161 d.C. – 180 d.C), imperador romano e pensador do estoicismo
Perazza leu uma das mais de 130 mil cópias do maior bestseller de Ryan Holiday no Brasil. A Intrínseca, que publica a maioria das obras do autor americano por aqui – incluindo O Ego é seu Inimigo – diz que os livros de Holiday já venderam mais de 320 mil cópias no país. Um fenômeno e tanto, já que uma tiragem média no Brasil fica por volta de cinco mil cópias.
Mas Holiday não inventou a roda, claro – muito menos o estoicismo.
A corrente filosófica floresceu na Grécia Antiga, onde tornou-se dominante por 600 anos, sendo a linha mais longeva daquela civilização. Foi popular ainda Roma Antiga, até padecer nas mãos do cristianismo ascendente. Tem Warren Buffet e Bill Gates entre seus admiradores contemporâneos. Até por isso, virou inspiração para executivos e profissionais em geral que buscam na filosofia helenística princípios que ajudem na progressão de carreira.
O trabalho de Holiday e de outros autores – quase todos americanos – foi dar verniz popular aos conceitos do estoicismo, transformando a corrente de pensamento milenar em dicas e histórias inspiradoras, encapsuladas nos livros que hoje vendem como pãozinho quente.
Para Rebeca Bolite, editora-executiva da Intrínseca, não se trata de mais uma onda de autoajuda, embora reconheça que as obras servem ao propósito de confortar leitores que buscam dicas práticas para lidar com os dilemas cotidianos, sobretudo os de âmbito profissional. “Muitos adeptos do estoicismo são pessoas de sucesso, como CEOs e grandes atletas”, lista.
“Essas pessoas encontraram nas virtudes do estoicismo um norte para o dia-a-dia”.
Resiliência, foco, disciplina, equilíbrio emocional. Todos são conceitos tipicamente atribuídos ao pensamento estoico e que costumam ser reforçados nos livros de autores popularizados pelo fenômeno. Essa dimensão prática do estoicismo também é citada por Lucas Oggiam, diretor da consultoria de recrutamento PageGroup, como chave para o sucesso da corrente filosófica entre as pessoas mais preocupadas com o andamento da carreira.
“Existem partes do estoicismo que são excepcionalmente correlacionadas com a vida dos executivos. Se você conseguir controlar a ansiedade para direcionar melhor suas ações, vai ter uma performance melhor e gerir bem o seu tempo”, opina Oggiam.
Mas será que o homem moderno está lendo direito o estoicismo? Há verdadeiros estoicos andando entre nós?
Não é bem assim
Superficial, incompleta e falsa. São essas as palavras escolhidas por Andytias Matos, doutor em filosofia pela Universidade de Coimbra para definir a “onda estoica” contemporânea. Não que ele não veja valor em livros que simplificam e popularizam as complexas escolas filosóficas, mas é que no caso do estoicismo o buraco é mais embaixo.
Professor em filosofia do direito na UFMG e autor de A Filosofia como Forma de Vida: uma introdução ao estoicismo grego-romano, o acadêmico argumenta que o pecado capital deste pretenso “neo-estoicismo” é a ênfase no indivíduo.
A corrente estoica, explica Matos, é uma “doutrina total” da realidade, da sociedade e do indivíduo. Não pode ser picotada conforme a conveniência do leitor para então ser diluída em um mero conjunto de práticas cotidianas. Se isso acontecer, pontua, temos qualquer coisa, menos o estoicismo.
Sim, complicou um pouco, o que faz deste um bom momento para recorrer a uma metáfora.
Considere uma árvore: nas raízes está a lógica, que é a razão da palavra, o discurso. O tronco é a física, o mundo natural, onde vivemos. E os frutos são a ética, que é a razão da vida, o modo de conduta. Lógica, física e ética são as três dimensões essenciais do pensamento estoico em que um aspecto é separado do outro, mas um está em consonância com o outro.
Matos explica que, para os estoicos, o sofrimento, a tristeza, o insucesso e a dor existencial existem na medida em que os seres humanos estão desconectados da razão. É a partir dessa premissa que o estoicismo desenvolve teorias e práticas com a proposta de reconectar o homem à racionalidade.
Isso significa tentar harmonizar as ideias (aquilo que se alcança por meio do exercício da razão) com a prática (a ação humana no mundo).
“O estoicismo é um exercício contínuo de transformação de si e do mundo que nos cerca – e essa transformação de si exige uma ação concreta no mundo. Não é passividade”, sintetiza o professor da UFMG, que cita a contribuição do pensamento estoico para o fim da escravidão no mundo romano como exemplo de como essa filosofia não deve ser confundida com resignação. “Como eles agiram? Não de forma revolucionária, espetacular. Mas de uma forma diária, cotidiana, tranquila, buscando a transformação social”.
Andytias Matos recomenda que os interessados no assunto leiam diretamente os autores estoicos clássicos, como o imperador romano e filósofo estoico Marco Aurélio. “São autores extremamente claros na sua escrita”.
Orquestrando a publicação de mais livros sobre estoicismo na Intrínseca, Rebeca Bolite vê como legítima a apropriação do estoicismo pela cultura popular, ainda que isso possa acontecer de maneira superficial.
“Uma coisa não inviabiliza a outra. O estoicismo ficou embalado agora pelo Ryan Holiday, mas as pessoas também vão ler as Meditações de Marco Aurélio”, argumenta.
“A gente vai passar e o estoicismo vai continuar. Fenômenos são fenômenos e não existe muito controle sobre eles”, filosofa – estoicamente? – a editora.