Corriam os anos 70. A Cohabinha ainda era uma arena de confusão. Não foi fácil ao menor arrabalde de Bacabal se tornar bairro. Seu Nezinho, dono das terras não queria, Dr. Cazuza, o prefeito, não queria, quase ninguém queria, só os coreanos queriam. Mas não eram os orientais das Coreias do Norte ou do Sul. “Coreanos” era a alcunha pejorativa a que eram chamados os “invasores”, os habitantes do novo bairro.
Era ali, na Rua São Benedito, por trás da nossa casa que morava a família de Seu Zé Pelé, uma das mais humildes da circunvizinhança. Eram todos pretos retintos, sem estudo, e certamente discriminados pela cor de sua pele e outros fatores. Dos diversos filhos havia o Jardiel, ainda menino e caçula, a quem o pai dispensava maior cuidado, sendo-lhe comum sair ao terreiro chamando-o a algum agrado ou intimação de agravo. O menino foi matriculado no turno matutino da U. E. José Romeu Neto, escola onde eu também estudava no turno vespertino. Todavia, Jardiel não parecia muito dado ao estudo, mas em contrapartida tinha lá suas peraltices e suspensões. Xingava e era apelidado de “Preto saliente”, “Nego do Codó” e termos semelhantes.
E agora descubro que já então havia o tal bullying e que os padrões eram outros. Valia a lei do mais forte.
Veio o fim do ano letivo. Jardiel ficou reprovado. Mas como? O moleque saía de casa todas as manhãs para ir à escola! O pai certamente estava crente de sua assiduidade e quiçá de seus sonhos futuros para quem sabe mudar a sorte daquela família. Contudo, o pretinho caçula decepcionou o pai, a família e talvez ele mesmo. Inconformado com a situação, Seu Zé Pelé foi, ele mesmo, até a escola levando o filho a tiracolo. Procurou a professora: reprovado, danado, rudo, faltoso... Procurou a diretora: reprovado, o jeito era repetir a série. Enfezado, saiu ainda em defesa do filho, mas, principalmente queria tirar outra dúvida: aquele preconceituoso nome “matutino”. Mostrou o boletim aos óculos da diretora:
– Intonce, além de meu fie ficar reprovado, 'ocês inda botaro escrito aqui neste papel que meu Jardiel é “matutino!” Ôxi! Isso não! Este menino nasceu bem aí no Bairro da Areia. Meu fie num tem nada de “matuto”.
A diretoria explicou o termo. Foram-se pai e filho para deles perder o paradeiro.
E agora, trinta e tantos anos depois me pego pensando: Por onde andará o Jardiel? Terá continuado os estudos? Terá passado nas séries seguintes? E o famoso bullying o terá traumatizado? Terá retornado ao Bairro da Areia? Ou terá estagnado? Ficado à toa na vida, literalmente “matuto”? Ou antes, terá ele progredido? Que profissional se tornou?
A vida é assim: a gente vive o presente na ignorância do futuro. Naquele tempo, assim como eu não sabia que o bairro da minha infância e que vi nascer, só seria asfaltado trinta anos após sua invasão, também o Jardiel poderá estar por aí no seu caminho asfaltado, com a vida recapeada, matutando o passado e sorrindo para o futuro. Uma coisa é certa. A Ele devo um grande favor, pois sem saber, ajudou-me, ainda na infância neste texto que também é dele.
Por Edgar Moreno
COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.
Era ali, na Rua São Benedito, por trás da nossa casa que morava a família de Seu Zé Pelé, uma das mais humildes da circunvizinhança. Eram todos pretos retintos, sem estudo, e certamente discriminados pela cor de sua pele e outros fatores. Dos diversos filhos havia o Jardiel, ainda menino e caçula, a quem o pai dispensava maior cuidado, sendo-lhe comum sair ao terreiro chamando-o a algum agrado ou intimação de agravo. O menino foi matriculado no turno matutino da U. E. José Romeu Neto, escola onde eu também estudava no turno vespertino. Todavia, Jardiel não parecia muito dado ao estudo, mas em contrapartida tinha lá suas peraltices e suspensões. Xingava e era apelidado de “Preto saliente”, “Nego do Codó” e termos semelhantes.
E agora descubro que já então havia o tal bullying e que os padrões eram outros. Valia a lei do mais forte.
Veio o fim do ano letivo. Jardiel ficou reprovado. Mas como? O moleque saía de casa todas as manhãs para ir à escola! O pai certamente estava crente de sua assiduidade e quiçá de seus sonhos futuros para quem sabe mudar a sorte daquela família. Contudo, o pretinho caçula decepcionou o pai, a família e talvez ele mesmo. Inconformado com a situação, Seu Zé Pelé foi, ele mesmo, até a escola levando o filho a tiracolo. Procurou a professora: reprovado, danado, rudo, faltoso... Procurou a diretora: reprovado, o jeito era repetir a série. Enfezado, saiu ainda em defesa do filho, mas, principalmente queria tirar outra dúvida: aquele preconceituoso nome “matutino”. Mostrou o boletim aos óculos da diretora:
– Intonce, além de meu fie ficar reprovado, 'ocês inda botaro escrito aqui neste papel que meu Jardiel é “matutino!” Ôxi! Isso não! Este menino nasceu bem aí no Bairro da Areia. Meu fie num tem nada de “matuto”.
A diretoria explicou o termo. Foram-se pai e filho para deles perder o paradeiro.
E agora, trinta e tantos anos depois me pego pensando: Por onde andará o Jardiel? Terá continuado os estudos? Terá passado nas séries seguintes? E o famoso bullying o terá traumatizado? Terá retornado ao Bairro da Areia? Ou terá estagnado? Ficado à toa na vida, literalmente “matuto”? Ou antes, terá ele progredido? Que profissional se tornou?
A vida é assim: a gente vive o presente na ignorância do futuro. Naquele tempo, assim como eu não sabia que o bairro da minha infância e que vi nascer, só seria asfaltado trinta anos após sua invasão, também o Jardiel poderá estar por aí no seu caminho asfaltado, com a vida recapeada, matutando o passado e sorrindo para o futuro. Uma coisa é certa. A Ele devo um grande favor, pois sem saber, ajudou-me, ainda na infância neste texto que também é dele.
Por Edgar Moreno
COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.